quinta-feira, 22 de abril de 2010

Tudo Pode Dar Certo


Tornou-se comum nos filmes de Woody Allen, a presença de um protagonista, cuja personalidade é marcada por ironia, neurose, hipocondria, inteligência aguçada e uma forte visão crítica em relação ao mundo. Para muitos, essa persona seria uma espécie de alter ego do diretor. Tal idéia é fortalecida pelo fato de que é, normalmente, o próprio Woody Allen que interpreta tais papéis. Porém no seu novo trabalho "Whatever Works" (Tudo Pode Dar Certo), diferentemente dos clássicos "Crimes e Pecados" e "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa", o cineasta delega à outro ator a responsabilidade de assumir a persona que tornou-se a marca registrada dos seus filmes. O intérprete escolhido foi o comediante Larry David, da série "Curb your Enthusiasm".

Nesse filme, o alter ego do diretor recebe o nome de Boris Yellnikoff, um intelectual da terceira idade, indicado ao Prêmio Nobel da Física e dono de um temperamento marcado por um forte mau humor. Sua vida divide-se entre aulas de xadrez para crianças e conversas de cunho existencialista e filosófico com alguns de seus vizinhos mais velhos. Entretanto, sua vida metódica sofrerá uma grande transformação, quando Boris resolve abrigar em sua casa uma jovem moça, sem dinheiro, ingênua e, sobretudo, dotada de um intelecto inferior ao seu. Se na teoria, essa situação tinha tudo pra dar errado, a realidade se mostrou surpreendente, já que a relação acaba dando certo. A jovem se encanta pelo jeito sério, rabugento e crítico de Boris e acaba se apaixonando por ele. Esse é o ponto de partida de uma história, fortemente marcada pelo humor e pela ótima qualidade.

No melhor estilo Woody Allen de se fazer cinema, "Whatever Works" faz uma viagem pela brilhante mente do protagonista, que expõe suas ácidas visões de mundo, de forma bastante humorada. Sempre que uma nova personagem surge em cena, queremos saber de imediato o que Boris dirá sobre tal figura. E são muitos os coadjuvantes que engrandecem o filme, representando um prato cheio para que o protagonista possa apresentar suas opiniões. Paralelamente, é muito interessante repararmos na fluidez e na naturalidade, com as quais se desenvolve a relação de Boris com a moça. Relacionamento esse que, embora marcado por fortes diferenças de gosto e de idéias, funciona muitíssimo bem.

Outro elemento bastante interessante da narrativa é a interação estabelecida entre o protagonista e o público. Em vários momentos, Boris se vira para o platéia, consciente de que, por trás da tela, pessoas estão sentadas o assistindo. Embora já tenha sido empregado em outros filmes do diretor, aqui tal recurso é utilizado com mais frequência e de um jeito original, já que o protagonista chega a perguntar aos coadjuvantes se eles estão cientes da platéia que os assiste. Ao perceber que ninguém possui essa visão, o protagonista reafirma: sua mente é definitivamente evoluída e diferenciada. Ao mesmo tempo, os outros personagens chegam a outro veredito: Boris Yellnikoff é, sem dúvidas, um louco. Sensacional!

Apesar de interpretar o já conhecido alter ego de Woody Allen, o comediante Larry David jamais soa repetitivo. Acostumado com papéis cômicos, o ator imprime um forte carisma à sua personagem, constituindo o grande trunfo do filme. É verdade que o seu papel tem uma essência parecida com antigos protagonistas da filmografia de Allen, porém a composição de Larry David se distancia levemente das demais. A principal diferença reside na forma como Boris expõe as suas idéias, sempre de um jeito agressivamente sarcástico. De fato, a grande diferença é essa: David é mais enérgico, mais agressivo do que Woody Allen fora em filmes como "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa".

Enfim, depois de um período fazendo filmes com abordagens diferentes, como "Vicky Cristina Barcelona" e "Match Point", Allen volta a filmar uma história com o viés cômico que o consagrou. Mais uma vez, constatamos o cuidado na construção do roteiro, que se revela bastante atual, o que é curioso, visto que foi escrito em 1977. O motivo para esse enorme atraso na realização do filme é interessante: o ator que iria fazer o papel principal faleceu antes de iniciar as filmagens e em função de sua morte, o roteiro foi engavetado. Somente agora, após 30 anos, o cineasta resolveu tirar o filme do papel. Provavelmente, após ter tido a certeza de que encontrara em Larry David a pessoa perfeita para encabeçar o seu antigo projeto.

Nota: 8

Um comentário:

  1. Mais um bom texto!

    Eu não pude conferir, mas confesso gostar do estilo "clássico" de neurose e hipocondria de Allen. Apesar de considerar Match Point e Vicky Cristina Barcelona boas abordagens sobre amor, humanidade e sensibilidade.

    Preciso ver este e ja!
    abraço!

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